Por algum tempo, incontável eu diria, peguei tudo e escondi
atrás da cama. Peguei umas cartas, alguns rabiscos, inúmeros papéis com
declarações que não mostro à ninguém (mas direcionadas sempre, sem sombra de
dúvidas), poucos textos, rimas mínimas e armazenei ali. Como se a parte de trás
da cabeceira da cama fosse um mural de você. Eu queria livrar da vista, da
culpa e da saudade. Livrar o tal peso. Esconder por trás da madeira, dos panos,
das pálpebras. Ninguém precisa ver, não é? Eu lembro cada linha que tracei.
Lembro o peso do corte, como diria um teórico da comunicação. Porque cada linha
é um corte no sentimento, no peito e no mundo. É o afundar na plenitude e
ligá-la ao coração. Algo assim, ele diria. Algo assim, eu acredito.
Isso foi no começo. É, bem no começo. Eu me vigiava pra não
pensar e, como canta o barbudo do Los Hermanos, “não te dizer o que eu penso já
é pensar em dizer”. Eu não queria ver, mas lembrava constantemente. Ainda
lembro. Com menos pesar, como uma história bonita, dessas de quando a gente é
criança e aspira pra vida toda, sabe? Como uma fantasia! Uma fantasia que ainda
penso, recordo todas as noites antes de apagar a luminária. Vejo quando as
pálpebras se encostam. Coisa minha, coisa de escritor-fantasioso-louco. E
lembrando a loucura, confesso que estou no caminho certo dela...
Se não é loucura, se não é rabisco-cortado-na-alma, não sei
o que é. Me sabotei de tal modo que até cheguei a crer que havia conseguido,
acredita? Cheguei a crer! Não consegui, realmente. Tá tão difícil de admitir
isso, personagem-da-margem. Tá difícil. Bom, depois desse começo e desse
meio-perturbado, ainda tem os detalhes. Detalhes que eu nem chego a crer que
vivo ainda. Tanto, tanto tempo. Imenso tempo que passa na fuga da mornidão...
Na fuga que cesso quando me escondo atrás da cortina pra te ver passar todos os
dias. É como se eu me escondesse de mim, até. Sento ali, de canto, bem no canto
mesmo, fecho um dos olhos, encosto a testa na batente da janela e observo.
Passos lentos, contados. Nada mudou no seu aspecto físico. Acho que a barba
está um pouco maior... Fiz isso todos os dias, personagem-marginal. Todos. E
sabe o que é pior? É o que nós temos no fundo. Fundo, lá no fundo, eu sabia o
quão babaca era fazer isso. Minha ficha sempre cai, os 5 segundos de lucidez ao
final do cigarro, que saio sorrateiro e me jogo na cama. Aí acendo a luminária.
É fim de tarde, coisa assim. Sempre no mesmo horário, com os passos contados.
Uma coisa de gente louca que se esconde em minúcias. Eu e ele, diria. Tenho
noção do quão bobo isso soa, personagem. Até perdi o fio da meada... Só não
perdi a linha. Hoje, justo hoje, resolvi relatar. Relatar pra ti, que senta ao
meu ombro e vê as besteiras de rapaz-em-fuga que cometo e dá risada ao pé do
meu ouvido. Relatar, pra mim, que não adianta muito, afinal. Depois de tempo,
tanto tempo, continuo indo até a janela...
Essa vida de ausentar-se. Falando em ausência, mal consigo
acabar o livro que o rapaz da barba me indicou. Algumas vezes sento perto da
janela, um tanto antes dele seguir o caminho, e fico lendo-o ali. Aí sinto o
mar no peito, mar na garganta, mar nos olhos... E abismo. Uma coisa rabiscada
assim. Cortada assim. Mas é isso, personagem-da-margem. É isso. Eu nem sei o
que fazer exatamente, mas manterei o meu mural. Depois de tanto tempo, resolvi
botar o pulso em prática. Resolvi colar mais alguns rabiscos-da-alma na
cabeceira da cama e escondê-los por trás das pestanas.
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